Conforme estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Administração Pública do século XXI experimenta mudanças dramáticas, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento. A globalização e a pluralização da prestação dos serviços públicos são forças motrizes por trás dessas transformações. Os problemas políticos enfrentados pelos governos são cada vez mais complexos, difíceis e globais, em vez de simples, lineares e nacionais. Ademais, os paradigmas convencionais pelos quais as reformas no setor público são formuladas e implementadas revelam-se estáticos e não contemplam o significado e as implicações dessas mudanças.2 Faremos aqui uma breve descrição dos principais períodos na evolução da Administração Pública.

1ª fase: Administração Pública Regaliana. Em período ainda anterior à submissão dos governantes ao império da lei, vigorava a denominada “Administração Pública Regaliana”, caracterizada pelo absolutismo e autoritarismo, patrimonialismo3 e pela irresponsabilidade4 do Estado pelos danos praticados pelos agentes públicos. O “rei não pode errar” (“the king can do no wrong”), dizia-se então. O Estado é o próprio Direito, logo, não se concebe que possa violá-lo. A célebre frase “l’Etat c’est moi” (o Estado sou eu), atribuída ao Rei Luís XIV, que governou a França desde 1643 até sua morte, bem simboliza aquele momento em que o Direito era sempre identificado com o poder real e, por isso, não se admitia que uma conduta estatal pudesse receber a pecha de violadora desse mesmo Direito.5

2ª fase: Administração Pública Burocrática ou Weberiana. Os ideais da Revolução Francesa e a ascensão de ideias iluministas, racionalistas e de controle do poder público, com consequente sujeição do Estado ao Direito, ou o desenvolvimento do Estado de Direito, permitiu a paulatina superação da fase anterior. Foi especialmente no século XIX que surgiu a denominada “Administração Pública burocrática”,

Weberiana” ou “Velha Administração Pública” (“Old Public Administration”), que coincidiu com o nascimento mesmo do Direito Administrativo, em reação ao autoritarismo e patrimonialismo da fase anterior. Com a burocracia buscou-se o controle dos atos administrativos, de forma a dotar a Administração Pública de maior racionalidade, hierarquia e profissionalismo. Prevaleceu o emprego da gestão “de cima para baixo”, com pouca participação dos administrados, e métodos repressivos, de “comando-e-controle”. Embora tenha sido relevante para justamente eliminar os abusos cometidos pelos governantes, superar o “Estado policial” e o poder público ilimitado, a Administração Pública burocrática passou a ser criticada pela sua rigidez, ineficiência, alto custo financeiro e formalismo excessivo.6 Críticas que, em verdade, ainda perduram e incentivam novas reformas, como a “PEC da Reforma Administrativa” (PEC 32/2020), a ser ainda votada pelo Congresso Nacional.

3ª fase: Administração Pública Gerencial. Em resposta à ineficiência e às falhas regulatórias derivadas da Administração Pública Weberiana, bem como em face do déficit fiscal e da expansão excessiva do tamanho do Estado decorrentes de estatizações e do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), desenvolveu-se a chamada “Administração Pública Gerencial” (New Public Management). Esse modelo emergiu em diversos países na década de 1980, com a finalidade de reduzir as despesas estatais e transpor ideias da iniciativa privada para o setor público.7 Tal paradigma surgiu na esteira do movimento desregulatório e neoliberal, destinado a reduzir o tamanho do Estado, promover privatizações e entregar à iniciativa privada a prestação de serviços outrora fornecidos pelo próprio poder público. Período que coincidiu com o denominado “Consenso de Washington”, encontro ocorrido em 1989, na capital dos Estados Unidos, onde se realizou uma série de recomendações visando ao desenvolvimento e à ampliação do neoliberalismo nos países da América Latina. Essa abordagem preconizou maior eficiência administrativa, responsabilidade pelos resultados alcançados em favor da coletividade (não apenas pelos meios empregados), análise de custo-benefício8 das ações regulatórias e redução das despesas públicas.

Foi esse movimento que inspirou planos de desburocratização9, desestatização e privatização10 no Brasil, bem como o desenvolvimento do Estado regulador, a criação de agências reguladoras11 a reforma administrativa de 1998 (EC 19/98), que, a bem da verdade, ainda não está concluída, como se percebe pelas inúmeras reformas da previdência, ajustes fiscais, criação de agências reguladoras12, privatizações e, finalmente, a recente “PEC da Reforma Administrativa” (PEC 32/2020), ainda não aprovada. De acrescentar ainda a recente Lei n. 14.129/21, que trata do “Governo Digital” e maior eficiência na Administração Pública. Contudo, como bem referiu Moreira Neto, no Brasil, essa “transição juspolítica, da administração burocrática para a gerencial, está tendo seu início antes que houvesse completado a primeira, pois as atividades e comportamentos do Estado-administrador continuam aferrados a conceitos e princípios do patrimonialismo, do paternalismo e do assistencialismo personalizantes e ineficientes, herdados ainda da Colônia e pouco tocados no Império”.13

Em que pese muitos autores compreendam o paradigma gerencial como a etapa mais evoluída da Administração Pública, este modelo também é objeto de críticas, principalmente pela falha em atender aos interesses dos cidadãos e carência de responsabilidade democrática, fragmentação e falta de coerência governamental pela criação de agências executivas e manutenção do controle “de cima para baixo”, com pouca colaboração dos interessados.14

4ª Fase: Novo Serviço Público, Nova Governança Pública e Administração Pós-Gerencial. Esses questionamentos deram origem a novas teorias que pretenderam solucionar os problemas da falta de coerência e colaboração por meio de uma abordagem completa de governo (“whole-of-government” approaches).15 Emergiram, assim, os paradigmas da “Nova Governança Pública” (New Public Governance) e do “Novo Serviço Público” (New Public Service), que apresentam as seguintes características essenciais, como mencionei em outra obra: “o foco da Administração Pública é direcionado aos cidadãos, à comunidade e à sociedade civil, os quais têm garantida a participação nas decisões administrativas; o Estado passa a ser tratado como mais um ator entre outros engajados na deliberação política e na execução dos serviços públicos, abandonando o exclusivismo ou a força predominante estatal; o papel principal dos servidores públicos reside em auxiliar os cidadãos a se articularem e atenderem seus interesses comuns, ao invés de exercer um controle ou orientação unilateral, bem como em proporcionar a intermediação, negociação e resolução de problemas em parceria com os interessados; a Administração Pública deve construir a noção de interesse público em conjunto com os cidadãos, mais que meros clientes, consumidores ou eleitores”.16 Nesse contexto, o próprio conceito de serviço público exigiu remodelação, para abrir margem a estratégias de prestação dos serviços essenciais à coletividade mais flexíveis, descentralizadas, eficientes, eficazes e próximas dos cidadãos. Como descreve Chevalier, as mudanças na política do serviço público superam a ideia de “usuário-cativo”, para incorporar as noções de “usuário-ator”, usuário-parceiro” e “usuário-cliente”. A eficiência se insere como fundamento mesmo do serviço público, com a necessidade de otimização dos recursos disponíveis, flexibilização dos procedimentos, incentivo à transparência e concorrência, descentralização e proximidade com os cidadãos, consagração do princípio da subsidiariedade, reforço da autonomia das agências reguladoras, para “transcender de uma lógica de meios para uma ‘lógica de resultados’”.17

Impende, demais disso, enfatizar a importância de uma dimensão inter- organizacional integrada. A perspectiva da Administração Pública Pós-Gerencial (post- New Public Management) surge para encampar um modelo compreensivo, que foca no governo como um todo (“whole-of-government” approach), na governança digital e na motivação para corrigir os problemas de coerência organizacional e responsividade associados ao paradigma anterior, colocando as necessidades e os interesses dos cidadãos no centro da gestão pública. Com isso, as reformas no setor público precisam ser sensíveis ao contexto e definidas em abordagens variadas ou híbridas, que possam se adaptar à complexidade e aos intrincados problemas enfrentados pela Administração Pública, enfatizar a importância da motivação e dos incentivos e privilegiar os interesses dos cidadãos, sem desprezar a manutenção de uma estrutura de serviço público eficiente e capacitada.18

Em conclusão, convém frisar que a complexidade, dinamicidade e variedade dos problemas contemporâneos, assim como a rápida evolução tecnológica, requer uma visão flexível e holística da Administração Pública, com aplicação de soluções criativa, uso das novas tecnologias, incentivos e maior consenso nas relações administrativas, sem prejuízo de medidas repressiva e de “comando-e-controle”, quando necessário.


2 ROBINSON, Mark. From Old Public Administration to the New Public Service: Implications for Public Sector Reform in Developing Countries. UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, 2015. Disponível em: http://www.undp.org/content/dam/undp/library/capacity- development/English/Singapore%20Centre/PS-Reform_Paper.pdf. Acesso em: 12 jan. 2016.
3 Isto é, a confusão entre o patrimônio público e o particular dos governantes.
4 Embora a França, Estados Unidos, Inglaterra e outros países experimentaram a fase da irresponsabilidade do Estado pelos atos praticados pelos seus agentes, a tese da irresponsabilidade nunca vingou no Brasil, ainda que a Constituição Imperial de 1824, no art. 179, inc. XXXI , bem como a primeira Constituição Republicana de 189, no art. 82 tenham positivado apenas a responsabilidade dos “empregados públicos” (CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Laemmert e C., 1905. p.104- 105; SEABRA FAGUNDES, M. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. At. Gustavo Binembojm. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006 p. 219-220).
5 Para uma análise detalhada da teoria da irresponsabilidade, seus defensores e fundamentos, vide: CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Laemmert e C., 1905, p. 106- 120; CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 18-19.
6 ROBINSON, Mark. From Old Public Administration to the New Public Service: Implications for Public Sector Reform in Developing Countries. UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, 2015.
7 ROBINSON, Mark. From Old Public Administration to the New Public Service: Implications for Public Sector Reform in Developing Countries. UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, 2015.
8 O procedimento de análise de custo-benefício das medidas regulatórias (cost-benefit analysis), idealizado e desenvolvido no direito norte-americano no início da década de 1980, para reformular os propósitos e do desempenho das instituições administrativas. Tema central desse movimento residiu em estimar se os custos da regulação são compensados pelos benefícios que ela produz (BREYER, Stephen. et. al. Administrative Law and Regulatory Policy: problems, text, and cases. 7. ed. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011. P. 27-28; SUNSTEIN, Cass. The Cost-Benefit State: the future of regulatory protection. Chicago: ABA Publishing, 2002; SUNSTEIN, Cass R. The Cost-Benefit Revolution. Cambridge: The Mit Press, 2018. Edição Kindle. Posição 229-257).
9 Iniciado pelo Dec. 83740/79, após o Dec. 5378/05 e, hoje, o Dec. 9094/17, pretendeu-se a desburocratização, simplificação, racionalização e informalização dos serviços públicos.
10 O Programa Nacional de Desestatização foi, primeiramente, previsto na Lei n. 8.031/90, depois substituída pela Lei n. 9.491/90, ainda em vigor.
11 Esse fenômeno foi marcante no Brasil com a introdução de dispositivos constitucionais, a partir do ano de 1995, prevendo a criação de agências reguladoras: a EC 8/95, que alterou o art. 21, XI da CF e deu ensejo à criação da ANATEL); EC 9/95 (CF, art. 177, § 2º) (ANP).
12 A última agência reguladora criada no Brasil, a Agência Nacional de Mineração (ANM), foi disciplinada pela Lei n. 13.575/17.
13 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro, Renovar: 2007. p. 17.
14 DENHARDT, Robert B.; DENHARDT, Janet Vinzant. The New Public Service: Serving Rather than Steering. Public Administration Review, v. 60, n. 6, p. 553, 2000; ROBINSON, Mark. From Old Public Administration to the New Public Service: Implications for Public Sector Reform in Developing Countries. UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, 2015.
15 ROBINSON, Mark. From Old Public Administration to the New Public Service: Implications for Public Sector Reform in Developing Countries. UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, 2015. 16 MOREIRA, Rafael Martins Costa. Direito Administrativo e Sustentabilidade: o novo controle judicial da Administração Pública. Belo Horizonte: Forum, 2017. p. 17-29. Esse relato foi por mim citado a partir de:
DENHARDT, Robert B.; DENHARDT, Janet Vinzant. The New Public Service: Serving Rather than Steering. Public Administration Review, v. 60, n. 6, p. 553-7, 2000; ROBINSON, Mark. From Old Public Administration to the New Public Service: Implications for Public Sector Reform in Developing Countries. UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, 2015.
17 CHEVALLIER, Jacques. O serviço público. Trad. Augusto Neves dal Pozzo e Ricardo Marcondes Martins. Belo Horizonte: Forum, 2017. p. 112-116.
18 DENHARDT, Robert B.; DENHARDT, Janet Vinzant. The New Public Service: Serving Rather than Steering. Public Administration Review, v. 60, n. 6, p. 553-7, 2000; MOREIRA, Rafael Martins Costa. Direito Administrativo e Sustentabilidade: o novo controle judicial da Administração Pública. Belo Horizonte: Forum, 2017. p. 19; ROBINSON, Mark. From Old Public Administration to the New Public Service: Implications for Public Sector Reform in Developing Countries. UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, 2015.